quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Relatos


"Rose permanecia sentada no sofá de frente para o janelão da sala. A televisão, na diagonal do sofá, exibia anúncios e dava um ambiente ambíguo ao espaço, sendo a única fonte de luz ligada. Fumava enquanto pensava profundamente, completamente alheia aos anúncios sensacionalistas dos canais privados finlandeses, curvada sobre si e abraçada aos seus joelhos. As palavras que deixara escapar sobre as suas origens em frente de Ville, repetiam-se vezes e vezes sem conta na sua cabeça.  (...)
A paisagem gélida à sua frente prendeu de novo a sua atenção assim que recomeçou a nevar. A neve sempre a fascinara, mas naquele momento apenas lhe proporcionava memórias, as quais ela já não sabia classificar se eram boas ou más. Não gostava de recordar, não gostava de relembrar e reviver emoções, magoavam-na mais que a presente infelicidade. Nunca falara sobre elas a ninguém, nem mesmo com o seu melhor amigo que dormia no quarto ao lado. Para ela eram memórias de outra vida, vividas por outra pessoa que não ela.
O sol começava agora mostrar-se, reflectindo-se nas ondas mais calmas do mar. Rose não o via, mas o céu cada vez mais claro dava conta da sua presença.
Acendeu outro cigarro e, num pequeno sprint à cozinha, foi buscar uma garrafa de vodka. Bebeu calmamente, pousando o queixo nos joelhos e admirou o nascer do sol tardio e gelado. Sorriu com ironia espelhada nos olhos. Adorava o Inverno, e tal como ele, Rose era fria e desligada de todo o tipo de emoções, principalmente as que a fizessem fraquejar. Detestava sentir-se exposta e sujeita a ser magoada. Para ela a única pessoa que a podia magoar era ela própria. Já não lembrava a última vez que sentira calor dentro de si, na sua alma.  (...)  Rose possuía sentimentos, tinha era medo de os demonstrar, e raiva por ter medo.
Sentia-se tonta e confusa, tantos pensamentos ao mesmo tempo, misturados com memórias antigas e rasuradas. Duas lágrimas gordas brotaram dos seus olhos.
Levantou-se e pousou a garrafa no chão, desapertou o cordão do corpete e este caiu inerte no chão. Sentiu uma forte tontura e sentou-se no sofá de novo. Pendeu a cabeça para a frente entre os joelhos. A sensação passou passado alguns segundos e voltou a sentar-se direita.
Acendeu outro cigarro e pegou de novo na garrafa de vodka.
Uma menina, vestida com um vestido amarelo e preto, olhos brilhantes e um sorriso feliz segurada pelo pai que sorria de volta, foi a imagem que tomou de assalto a memória de Rose. Uma dor imensa alojou-se no seu peito, fazendo-a fechar-se sobre si, e abraçando os joelhos apoiou a testa neles. Chorou silenciosamente durante cerca de uma hora, apenas os seus ombros moviam e os seus cabelos longos e ruivos oscilavam com eles. Levantou a cabeça lentamente, o sol já ia alto. Agarrou de novo a garrafa e num rasgo de raiva, bebeu todo o seu conteúdo de uma só vez. Levantou-se e correu para a cozinha, pegou numa garrafa de vinho branco e bebeu-a até meio, nunca parando de chorar. Apoiou as mãos na bancada, pendendo a cabeça para baixo, encarando o chão. As lágrimas caiam e marcavam de escuro a tijoleira negra da cozinha. Permanecia apenas com o soutien e os jeans justos, o seu corpo extremamente magro tremia violentamente e Rose caiu no chão de repente. Queria gritar, queria mexer-se, ainda tentou rastejar mas foi inútil. A vista tornava-se cada vez mais turva e era difícil manter uma linha sólida de pensamento. Aos poucos foi-se deixando ir sem questionar, nem lutar… ela tinha ido para lá do que aquilo que sabia que o seu corpo aguentava, tinha juntado o álcool, as drogas e as emoções num cocktail, que para ela, era fatal. Fechou os olhos lentamente à medida que se sentia ser sugada pela dormência. Pensou que finalmente a morte a tivesse ido buscar."

in "O Diário Secreto de Mary Rose" (Texto Adaptado) 

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