"Rose permanecia sentada no sofá de frente para o janelão da
sala. A televisão, na diagonal do sofá, exibia anúncios e dava um ambiente
ambíguo ao espaço, sendo a única fonte de luz ligada. Fumava enquanto pensava
profundamente, completamente alheia aos anúncios sensacionalistas dos canais privados
finlandeses, curvada sobre si e abraçada aos seus joelhos. As palavras que
deixara escapar sobre as suas origens em frente de Ville, repetiam-se vezes e
vezes sem conta na sua cabeça. (...)
A paisagem gélida à sua frente prendeu de novo a sua atenção
assim que recomeçou a nevar. A neve sempre a fascinara, mas naquele momento
apenas lhe proporcionava memórias, as quais ela já não sabia classificar se
eram boas ou más. Não gostava de recordar, não gostava de relembrar e reviver
emoções, magoavam-na mais que a presente infelicidade. Nunca falara sobre elas
a ninguém, nem mesmo com o seu melhor amigo que dormia no quarto ao lado. Para
ela eram memórias de outra vida, vividas por outra pessoa que não ela.
O sol começava agora mostrar-se, reflectindo-se nas ondas
mais calmas do mar. Rose não o via, mas o céu cada vez mais claro dava conta da
sua presença.
Acendeu outro cigarro e, num pequeno sprint à cozinha, foi
buscar uma garrafa de vodka. Bebeu calmamente, pousando o queixo nos joelhos e
admirou o nascer do sol tardio e gelado. Sorriu com ironia espelhada nos olhos.
Adorava o Inverno, e tal como ele, Rose era fria e desligada de todo o tipo de
emoções, principalmente as que a fizessem fraquejar. Detestava sentir-se
exposta e sujeita a ser magoada. Para ela a única pessoa que a podia magoar era
ela própria. Já não lembrava a última vez que sentira calor dentro de si, na
sua alma. (...) Rose possuía
sentimentos, tinha era medo de os demonstrar, e raiva por ter medo.
Sentia-se tonta e confusa, tantos pensamentos ao mesmo
tempo, misturados com memórias antigas e rasuradas. Duas lágrimas gordas
brotaram dos seus olhos.
Levantou-se e pousou a garrafa no chão, desapertou o cordão
do corpete e este caiu inerte no chão. Sentiu uma forte tontura e sentou-se no
sofá de novo. Pendeu a cabeça para a frente entre os joelhos. A sensação passou
passado alguns segundos e voltou a sentar-se direita.
Acendeu outro cigarro e pegou de novo na garrafa de vodka.
Uma menina, vestida com um vestido amarelo e preto, olhos
brilhantes e um sorriso feliz segurada pelo pai que sorria de volta, foi a
imagem que tomou de assalto a memória de Rose. Uma dor imensa alojou-se no seu
peito, fazendo-a fechar-se sobre si, e abraçando os joelhos apoiou a testa
neles. Chorou silenciosamente durante cerca de uma hora, apenas os seus ombros
moviam e os seus cabelos longos e ruivos oscilavam com eles. Levantou a cabeça
lentamente, o sol já ia alto. Agarrou de novo a garrafa e num rasgo de raiva, bebeu todo o seu conteúdo de uma só vez.
Levantou-se e correu para a cozinha, pegou numa garrafa de vinho branco e
bebeu-a até meio, nunca parando de chorar. Apoiou as mãos na bancada, pendendo a
cabeça para baixo, encarando o chão. As lágrimas caiam e marcavam de escuro a
tijoleira negra da cozinha. Permanecia apenas com o soutien e os jeans justos, o
seu corpo extremamente magro tremia violentamente e Rose caiu no chão de
repente. Queria gritar, queria mexer-se, ainda tentou rastejar
mas foi inútil. A vista tornava-se cada vez mais turva e era difícil manter uma
linha sólida de pensamento. Aos poucos foi-se deixando ir sem questionar, nem
lutar… ela tinha ido para lá do que aquilo que sabia que o seu corpo aguentava,
tinha juntado o álcool, as drogas e as emoções num cocktail, que para ela, era
fatal. Fechou os olhos lentamente à medida que se sentia ser sugada pela
dormência. Pensou que finalmente a morte a tivesse ido buscar."
in "O Diário Secreto de Mary Rose" (Texto Adaptado)
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